Gritos
Florence Welch me visitou no meu parto, agora ouço sobre seu aborto
Quando eu estava em trabalho de parto, no início a dor das contrações me fez chorar. De vulnerabilidade e tristeza, um lamento pela sensação tão brutal do meu corpo se espremendo por dentro para fazer meu filho descer e meu colo do útero se abrir. Depois de algum tempo descansando com o conforto da analgesia, a reta final se deu à plena dor. Nessa hora, minha resposta não foi o choro, mas o grito. De tanto gritar, e de tanto gritar alto, minha voz se aqueceu e eu fui conseguindo gritar cada vez mais alto e por um tempo cada vez mais prolongado. Após um desses berros de dor sustentados por vários segundos, pensei que talvez seja essa a potência que uma cantora sinta. Na minha loucura do momento, pensei que, se eu estava conseguindo gritar daquele jeito sem a voz falhar, talvez eu pudesse aprender a cantar como Florence Welch.
Sou fã dela há muitos anos, mas não desde sempre. Claro, fui cativada pelo primeiro hit, Dog Days Are Over, e gostei demais do segundo disco, Ceremonials. Mas em algum momento, fiquei com a impressão de que Florence enveredava muito pela linha de parcerias com djs, adotando uma sonoridade muito pop fazendo músicas que não são a minha praia, e parei de acompanhar.
Em 2016, fui com uma amiga ver Mumford and Sons, num show que seria seguido por Florence + the Machine. As bandas estavam escaladas para um festival em São Paulo, e, pela demanda, fizeram um show no Rio também. Eu estava de coração partido e basicamente queria gritar “I will wait for you” com o Mumford, chorar e ir embora. Mas minha amiga e eu concordamos em ficar um pouco pra espiar o show da Florence.
Fiquei completamente embasbacada. O jeito dela se mover pelo palco, com força e graça ao mesmo tempo, rodopiando descalça num vestido azul esvoaçante, foi nada menos do que hipnótico. A energia dela, cantando e dançando, a presença e o domínio, era de uma magnitude que eu não esperava, e me lembro de comentar que aquele fogo todo só poderia ser alimentado por substâncias. Não era possível. Eu estava redondamente enganada, pois não sabia, mas naquele show já fazia dois anos que Florence estava sóbria. Ficamos até o final. A partir de então, me abri para acompanhar sua carreira e sua produção com um recém-descoberto fascínio.
Não sou do tipo que precisa saber de tudo sobre a vida dos artistas. Me basto em interagir com a obra e os eventuais dados biográficos que chegam a mim sem que eu vá buscar. De modo geral, acho interessante que se preserve um véu e que se sustente um espaço para que a música tome forma e significado com liberdade. Além do que, na arte (e na psicanálise) importa mais a experiência do que a objetividade dos fatos. Por essa razão, foi na virada do segundo para o terceiro disco de Florence, descoberto graças ao fatídico show supracitado, que eu verdadeiramente me apaixonei, pois é o ponto da virada de um repertório mais alegórico e fabular para uma crueza, uma honestidade da vida vivida. É quando o universo mágico a que as músicas aludem aterrissa na dureza e na pequenez dos sofrimentos cotidianos. Gosto quando Florence começa a escrever sobre mensagens não respondidas e ghosting dentro de uma aura ainda completamente mística, como em Big God, por exemplo.
Acompanhei ansiosa o lançamento de Dance Fever, poucos dias após eu parir meu filho. Ouvi o disco pela primeira vez de madrugada, de fone, com meu recém-nascido no colo, entre mamadas e leite regurgitado. Nesse álbum, ela encosta na maternidade e, pelo momento cru que eu vivia, foi inevitável sentir um gosto especial. A ambivalência com que Florence diz que não sabe se terá filhos, que “não é mãe nem esposa, é rei”, não como um triunfo ou um deboche, mas como uma constatação melancólica do fato de que não se pode ter tudo quando se é mulher.
Me lembro da peleja dos primeiros meses de maternidade, me deparando com a materialidade da demanda, das limitações, das dores, e de pensar que, realmente, se tem um trabalho incompatível com a maternidade é o de rock star. Pelo menos, com o início da maternidade, pois, claro, há inúmeras cantoras que têm filhos. Me parece que, no caso delas, um movimento de recolhimento por alguns anos é o que propicia a conciliação, essa palavra que minha orientadora de doutorado detesta com razão. É comum que se tire alguns anos de pausa enquanto as crianças são pequenas até que se possa retomar a criação e as performances. Isso, evidentemente, para as mulheres. Músicos homens têm filhos a torto e a direito sem jamais ter que lidar com esse dilema.
Florence veio ao Rio novamente, no segundo ano da turnê de Dance Fever, em 2023, e pude vê-la ao vivo mais uma vez. Foi o primeiro (e único) vale night que tive com o pai do meu filho, que também é fã dela, e que, inclusive, também estava no show de 2016, sem que nos conhecêssemos. Fui sábia de ir ao show com uma “calcinha absorvente”, também conhecida como fralda adulta, pois tinha receio de que, tendo recém completado 1 ano pós-parto, eu pudesse ter escape de urina. Dito e feito: quando Florence entoou Free, eu pulei, chorei e me mijei bastante.
Em agosto daquele ano, a turnê se encaminhava para o final, e pelas redes sociais vi que os últimos shows precisaram ser reagendados. Entre as informações vagas divulgadas para explicar a situação, havia menção a uma “cirurgia abdominal de grande porte de emergência”. Imediatamente pensei em perda gestacional com repercussões graves, mas não tivemos mais notícias que confirmassem ou não essa minha intuição.
Florence tem dito nas entrevistas de divulgação de seu novo álbum, Everybody Scream, que suas músicas têm um estranho poder premonitório. Ela menciona bastante os versos de King “eu não imaginava que meu assassino viria de dentro”, mas o que me vem à cabeça são os de Choreomania, que abrem a música dizendo “estou surtando no meio da rua com a plena consciência de ser uma pessoa a quem nada de verdadeiramente mau jamais aconteceu”.
Numa entrevista ao The Guardian, pouco após o anúncio de Everybody Scream, Florence revelou que sofrera um aborto espontâneo de uma gestação ectópica, e que tivera hemorragia interna grave, colocando-a em severo risco de vida. A experiência mais próxima de criar vida também foi o mais perto que esteve da morte, ela tem dito. O disco novo é fruto do processo de elaboração dessa experiência.
Mas há algo a mais que Florence traz no clima, no tema, nas melodias e nas letras que me cativa profundamente: aproximar-se da maternidade, seja pela tentativa, pela perda ou pelo exercício, é um desvelamento brutal e irreversível do quanto o mundo não é feito para mulheres com filhos. Florence demonstra a fúria dessa constatação ao longo do disco todo, e os versos de You can have it all me puseram aos prantos.
I used to think I knew what sadness was
I was wrong
A piece of flesh, a million pounds
Am I a woman now?
A decisão pelo universo do horror para compor a ambiência do disco, e também pela postura enfurecida nas letras, é a recusa do silenciamento frequentemente imposto à experiência de perda gestacional, mas vai além do luto pelo aborto: traz o paradoxo inescapável, e ainda mais implacável sobre a mulher, de que aquilo que mais se quer frequentemente é aquilo que implica mais perdas.
O horror e a cólera também trazem a franqueza da experiência de gestar e perder: a dor, o sangue, a violência, a brutalidade, a presentificação da morte. A inexorabilidade do corpo, dos órgãos, a fragilidade e a finitude. Trazer esses elementos para o centro da obra é um gesto que não só elabora o trauma, como também contribui para desmantelar o monolito da idealização da maternidade. Everybody Scream, assim, faz pela música o que Nightbitch e Morra, amor fazem pela literatura, o que O Babadook faz pelo cinema… O disco vem se oferecer com o uma trilha sonora farta para a fúria feminina.
Florence abraça a monstruosidade, não se isola numa posição de lamento e explora imagens de transformação atravessadas pelo horror da completa ausência de controle que temos sobre o corpo. Kraken é um dos resultados, e em toda a relação simbólica entre a gestação e a água, a imagem de um monstro marinho faminto e sanguinário se faz num misto de terror e humor.
Witch Dance traz uma sonoridade sombria e áspera que ecoa a PJ Harvey dos anos 90, em sua fase mais crua e vivaz. PJ Harvey também me parece influenciar Perfume and Milk, junto com a escuridão característica das músicas de Chelsea Wolfe.
Florence se debruçou em pesquisas sobre misticismo, ocultismo, paganismo e bruxaria, segundo ela como um impulso por se aproximar da fantasia do controle da realidade e também de rituais de cura e proteção. Elementos desse universo aparecem em menções a plantas e seres mágicos, como em Drink Deep, uma das músicas mais fortes do disco, narrando uma espécie de ritual psicodélico e autofágico. Para essa faixa, Florence trabalhou com o coral Idrîs Ensemble, que pesquisa e apresenta manuscritos musicais medievais. A pujança hipnótica da música, somada às imagens da letra, a suas metáforas e à intensidade das vozes do coral, trazem toda a grandiosidade de Ceremonials para uma experiência das “merdas da vida real que começam a acontecer inevitavelmente a partir de uma certa idade se você pôde viver boa parte da vida protegido”, como Florence tem dito em algumas entrevistas.
A faixa mais marcante e mais especial para mim é Sympathy Magic. A começar pelo arranjo crescente, sempre envolvente, é uma daquelas músicas características de Florence em que a vivacidade empolgante da melodia caminha com versos tristíssimos. Por sinal, desde Dog Days Are Over, me surpreende como às vezes suas músicas são tomadas como alegres quando são o exato oposto. Nunca vou entender por que Dog Days é tão popular em casamentos. Mas voltando, Sympathy Magic conjuga basicamente tudo que Florence + the Machine tem de melhor. É catártica, confessional, e os versos “I do not have to be worthy, I no longer try to be good, it didn’t keep me safe like you told me that it would” trazem o paradoxo de serem libertadores e aterrorizantes ao mesmo tempo, e me tocam profundamente na minha própria história. Sympathy Magic tem algo de indescritível que também sinto em Heroes, do Bowie. Uma imponência, uma demanda por solenidade que me impede terminantemente de ouvir en passant, de deixar tocando no ambiente, não, é preciso parar e se entregar toda vez. Não dá pra ouvir blasé, não dá pra ouvir baixo, não dá pra ser música de fundo de nada. Entende?
And Love, que encerra o álbum, é a consciente tentativa de Florence de se apossar do poder premonitório e profético de suas músicas. Ela fala de um amor no qual se possa repousar, se recolher, e de uma sonhada experiência de paz. É um feitiço, uma oração. Mas também é, dolorosamente, uma canção de ninar.
Parece estar pulsante em Florence o desejo pela maternidade. Ficam os meus votos (e meus feitiços) para que ela possa atravessar esse portal, da forma que for, tirar para si o tempo que for necessário, e viver plenamente essa experiência tão radical e radicalizadora.




Se não fosse tarde da noite aqui, já tinha colocado o álbum para tocar! Vou ter que esperar até amanhã 😅 Adorei essa resenha misturada com detalhes da sua história e vida, Adélia <3
Veio aí e veio muito bom!