O que eu devo à música afro-americana
Como meu tempo na Escócia me fez entender por que eu amo tanto Soul e Funk
O tema de hoje é um pouco diferente. Não é um texto sobre maternidade. Mas é sobre algo que é parte integrante da minha vida e que considero um indicativo bem preciso da minha saúde mental: música. Quando não estou bem, entre muitas coisas, percebo que leio pouco e ouço pouca ou nenhuma música. Ao contrário, se está tudo bem, a leitura é profusa e a música é frequente. Tenho, inclusive, uma regra pessoal de que só escuto Stevie Wonder se estiver feliz. Não se aplica nem a uma tentativa de me alegrar, não, tenho que já estar pra cima pra poder apreciar Songs in the key of life, por exemplo.
O nome desse disco fortuitamente me aponta pro cerne da minha relação com a música negra americana: soul e funk são gêneros musicais que me injetam de vida. Convocam a corporeidade, me fazem sentir o sangue correndo, me dão vontade de bater palmas e me mexer. E isso é gigante.
Por muitos anos, minha apreciação da música afro-americana se manteve nesse plano do efeito causado e eu não tinha uma maior compreensão acerca do porque eu me sentia assim. É provável que eu me contentasse com explicações abstratas e, depois vim a entender, eurocêntricas, que historicamente atribuíram às expressões musicais de herança africana uma relação entre corporeidade e ancestralidade sob a categoria de “primitivismo”.
Mas aí, em 2019, tive a oportunidade de fazer um intercâmbio acadêmico no final da minha segunda graduação. Fui para a Universidade de Edimburgo, onde estudei por um semestre. Minha escolha de disciplinas foi eclética: uma sobre sociologia da saúde, uma sobre narrativas tradicionais e uma sobre história da música popular. Consegui aproveitar créditos somente das duas primeiras, porém, a cadeira de história da música popular foi, seguramente, o melhor curso que fiz na minha vida.
Aqui pauso para sublinhar a quantidade de camadas de privilégio que se acumulam nessa história. Precisei ir para outro país, com outra língua, num investimento que não foi bobagem, mas que foi possível, para ter a experiência que finalmente me fez entender por que soul e funk têm o efeito que têm em mim (e em milhões de outras pessoas, claro). Sem contar que a matéria não supriu uma demanda acadêmica, mas um interesse pessoal. Não desconsidero isso nem por um segundo.
O curso seguiu um fio cronológico desde os primeiros recursos tecnológicos de popularização de gravações, na virada do século XIX para o XX, chegando ao fenômeno dos streamings e suas implicações técnicas, mercadológicas e artísticas. As aulas eram primorosas e, por mais de uma vez, eu tive vontade de aplaudir ao final. A coordenadora do curso era a professora Marian Jago, uma canadense radicada na Escócia. Um dos pontos que a professora Marian sustentou ao longo de todo o semestre foi a necessidade de estar atento e de identificar os mecanismos pelos quais a música popular refletia as transformações sociais, sobretudo no tocante ao racismo estrutural e a luta pelos direitos civis nos EUA. Em diversos momentos, ficou claro o quanto a música popular e a herança afro-americana são imbricados, em parte pela disseminação da cultura musical negra e em parte pela cooptação de elementos da música negra pelos artistas brancos. Não que eu nunca tivesse pensado nisso, mas nunca tinha refletido com tamanha profundidade, por meio de um pensamento estruturado, e com abundância de referências que eu desconhecia. Certamente nunca tinha tido tempo dedicado na agenda para, duas vezes por semana, pensar e discutir esse assunto. E eu abracei cada minuto dessa oportunidade.
Estudar e preparar os ensaios dessa disciplina foram um prazer à parte. A bibliografia recomendada, com enfoque afrocêntrico, abriu toda uma forma de compreender e de experimentar a música que eu estava investigando. Também foi um deleite ter contato com trabalhos acadêmicos sobre soul, funk e música popular em geral, de modo que nunca foi chato ou burocrático ler um artigo que tinha esses temas como objeto. Da mesma forma que não dá pra ouvir James Brown e ficar parado, não dá pra escrever sobre James Brown e ser um texto sisudo e chato.
A melhor parte disso tudo foi ir a fundo nos pontos que conectavam, na linha do tempo, um gênero musical e outro. Tudo bem, eu sabia por alto da importância da música gospel para o soul, o funk e mesmo o rock. Mas nesse curso pude aprender a identificar os elementos, as técnicas, as estruturas, ou seja, adquiri um letramento musical que eu não tinha como ouvinte leiga. E aí eu entendi por que eu me sinto viva quando escuto Sam Cooke, ou Isaac Hayes. Em suma, não se trata de um mero efeito do ritmo, da prosódia e das melodias, mas do emprego de técnicas ancestrais com a intenção artística clara de impregnar vitalidade no som e na performance e, com isso, transmitir vitalidade ao público. E transmitir vitalidade é um poder imenso, sobretudo entre pessoas marginalizadas e oprimidas.
Queria compartilhar, então, os textos que produzi como resultado da pesquisa. O primeiro é um texto breve sobre a técnica de oratória na música afro-americana. O segundo, que compartilharei em separado, é uma análise da gravação de Try a little tenderness de Otis Redding. Minha intenção é a de deixar acessível os aprendizados que eu tive e que foram verdadeiras iluminações, que mudaram minha relação com gêneros musicais que eu já amava. Quem sabe, posso contribuir com mais alguém.
Além do sentimento: o papel da oratória na música negra norte-americana
À medida que a indústria fonográfica crescia e se tornava um negócio multimilionário nas duas primeiras décadas do século XX, a música gravada por e para afro-americanos fazia parte do catálogo de “race records”. No entanto, conforme mais músicas feitas por artistas negros eram gravadas e vendidas em todos os Estados Unidos, certos aspectos do som criado por esses músicas começaram a se destacar. Ficou claro que havia algo na música negra que capturava uma qualidade indescritível, resultando em obras que cativavam muito além do público pretendido, influenciando, ao fim e ao cabo, a música do século XX como um todo. Mas se tudo isso parece uma experiência etérea — talvez até poética — da música, é preciso apontar para uma lacuna muito específica na compreensão que o mundo branco tem da cultura africana.
Oratória é um conceito particularmente importante para compreender a música negra gravada nos Estados Unidos no último século. Considerando o termo como o conjunto de discursos orais, em suas diversas formas, de um determinado povo ou cultura, a oratória afro-americana possui importância especial. Como a principal forma de expressão em um contexto de leis que impediram a população negra de aprender a ler e escrever durante a escravidão nos Estados Unidos, a palavra falada foi, portanto, o “meio fundamental de comunicação”, presente em todas as partes da vida, valorizada e apreciada por suas “sutilezas, prazeres e potenciais”. A oratória negra, como descreve Molefi Asante, também inclui o Nommo, a noção africana de expressão vocal como agente transformador. É a ideia de que parte do poder do que está sendo dito reside na forma com que é dito. Nesse sentido, os espaços religiosos da comunidade negra norte-americana cultivaram esses aspectos da herança africana de maneira destacada.
A igreja era um ambiente central na vida da população negra norte-americana, e constitui uma dimensão fundamental no desenvolvimento da música afro-americana no início dos anos 1900. Era um local de segurança, de relativa liberdade de expressão e de reunião. A ênfase formal da black church reside na oralidade, em vez do texto, estabelecendo uma relação estreita entre discurso e música nos cultos. Enquanto a música, altamente improvisada e frequentemente baseada em estruturas de chamada-e-resposta, tradicionalmente funcionava como um dispositivo para “acalmar as emoções” e engajar a congregação, o próprio pastor utilizava oratória e nommo em uma “alternância de sílabas acentuadas e não acentuadas, atribuindo até às pausas qualidades rítmicas” durante o sermão. Assim, a reunião, em um único espaço, da música e do nommo viria a ser uma fonte crucial de elementos específicos das expressões musicais afro-americanas do século XX.
Como exemplo, a renomada cantora gospel Mahalia Jackson, em sua interpretação de “Summertime/Sometimes I Feel Like a Motherless Child”, oferece uma combinação comovente de tempo lento e arranjo minimalista. A canção explora o contraste entre notas agudas do piano e dos improvisos vocais de Mahalia e notas mais graves, representadas por seu timbre rico e profundo, conferindo um tom ambíguo ao produto final. Esse uso de oratória e de instrumentação convida o ouvinte a lembrar que o poder da gravação em produzir significado vai além da letra (ou da escolha das músicas do medley), estando substancialmente ligado ao modo como os sons são transmitidos.
Em suma, a noção de que há algo na música negra que é em certa medida indescritível e etéreo — apesar de ser extremamente valioso — serve para evidenciar o analfabetismo da experiência branca/mainstream em relação às tradições africanas. O que não é surpresa, considerando o silenciamento histórico intencional do continente africano e de seu povo.
Essa qualidade aparentemente indefinível é, na verdade, indefinível porque seus elementos não fazem parte de nosso vocabulário eurocêntrico.
Não se trata de racionalizar a metafísica de um vasto corpo de composições, mas de reconhecer e honrar suas origens.
A textura cativante da música negra — frequentemente descrita por críticos como exótica, crua ou primitiva (mesmo quando a intenção é o elogio) — é, na verdade, uma tessitura altamente sofisticada de técnicas, estratégias históricas e cultura oral: uma combinação de tradição encarnada e experimentações tecnológicas que resulta em uma complexa sobreposição de significados, sendo a oratória apenas uma de suas dimensões.
Referências
Asante, Molefi Kete , “African American Orature and Context” in The Afrocentric Idea, pp. 95-143. Philadelphia: Temple University Press, 1998.
Floyd, Samuel, “Ring Shout! Literary Studies, Historical Studies, and Black Music Inquiry” in Black Music Research Journal, Vol. 22, pp. 49-70. Supplement: Best of BMRJ: 2002.
Jago, Marian. “African American Influences”. Class lecture in Popular Music History, University of Edinburgh, Edinburgh, 30th of January and 1st of February, 2019.
Dicas
Obs.: infelizmente, as referências e dicas que eu tenho são todas em inglês. Mas achei que valia compartilhar, de toda forma.
We want the funk: a history of funk music and black liberation of the 1970s, da PBS.
Videoensaio do Polyphonic (meu canal de música favorito) sobre prog-soul, subgênero do soul.
Livros
The Power of Black Music, Samuel Floyd.
Everything but the burden: what white people are taking from black culture, Greg Tate.
Por favor, mais textos sobre música! Esse é um dos meus temas favoritos e adoro os artistas que você citou.