Quem pode ter uma obsessão?
O que está em jogo quando pessoas que quebram recordes têm filhos
Talvez a imagem mais recorrente que usemos para nos referir à maternidade seja a do equilibrista de pratos. Uma arte de atenção e habilidade, que por vezes parece irreal. Uma coisa curiosa, peculiar.
Outra metáfora boa é a da corda-bamba, mais uma atração circense, que inclusive fundamenta a proposta desta newsletter. É um ofício que também requer equilíbrio e concentração, mas numa cena que traz mais riscos, coisa que os pratos, bem, dane-se uns pratos quebrarem de vez em quando, né. A corda-bamba também traz, por associação, a imagem da rede de segurança, o que se traduz na maternidade como rede de apoio. A questão é que, no circo, ninguém começa a se equilibrar a metros do chão sem rede de segurança, enquanto mãe sem rede de apoio é o que mais tem.
No auge do meu puerpério, entretanto, uma outra associação me capturou. Não sei bem por quê, talvez por ter sonhado por muitos anos com ondas gigantes graças a reportagens sensacionalistas do Fantástico sobre o vulcão das ilhas Canárias quando eu tinha uns 10 anos, mas a imagem que mais representou a maternidade pra mim, pelo menos o início da maternidade, é a do surfista de ondas gigantes.
Maternidade e oceano são campos semânticos que conversam muito, toda a questão de iniciarmos a vida submersos em água, numa repetição ontológica da história da vida na Terra, como bem destacou Ferenczi em “Thalassa”. A onda gigante tem essa dimensão sublime, espetacular e ao mesmo tempo potencialmente mortífera, e surfá-la é um esporte que requer habilidade e um significativo grau de petulância. Pra mim, pra minha experiência, nada traduz essa loucura ordinária como o contraste do paredão de água com a pequenez do sujeito sobre a prancha. Muito está em jogo a todo momento nesse encontro de algo tão banal quanto uma vida individual com a magnitude do berço primevo de toda forma de existência.
Eis que comecei a seguir perfis de surfistas de ondas gigantes e me interessei em conhecer algumas de suas histórias. No ano passado, conheci a série “Onda de 100 Pés”, da HBO, que está em sua 3a temporada. Com fotografia magistral que combina imagens diretas da água e de drones, a série tem trilha musical composta por Philip Glass, compondo uma experiência de contemplação e de reflexão que era bem o que eu estava buscando quando resolvi seguir esse fio temático.
A série acompanha diversos surfistas do mundo, muitos brasileiros inclusive, mas o protagonista claro é Garret McNamara, surfista que capitaneou todo um movimento pelo surfe de ondas gigantes e que, basicamente, colocou Nazaré no mapa dos circuitos.
Aqui eu queria fazer uma ressalva: apesar de se tratar uma série documental, ou seja, que retrata pessoas reais em suas vidas reais, a estrutura de toda obra audiovisual pressupõe uma construção de personagens. Há recortes conscientes em termos do que é utilizado para compor uma coerência narrativa que é sempre feita à posteriori. Em outras palavras, todo documentário constrói uma lógica a partir de elementos destacados, de decisões de corte e de enquadramento, de modo que a vida real acontecendo normalmente jamais é reproduzida com absoluta fidelidade. Nesse sentido, tudo que vemos em documentários tem algum grau de distanciamento e de parcialidade, não sabemos quem verdadeiramente são aquelas pessoas em sua total complexidade.
Dito isso, o personagem Garret McNamara que conheci na série me dá nos nervos. E sim, isso tem a ver com maternidade.
Sabemos que, de modo geral, os grandes feitos da humanidade exigem enorme dedicação, perseverança, ousadia e talento. No campo dos esportes, atletas de elite têm suas vidas dedicadas ao cultivo do corpo como meio de trabalho, atentando para a saúde orgânica como instrumento fundamental para qualquer realização. Nos esportes extremos, acrescenta-se um grau de risco à saúde e à vida que nos leva para um terreno limítrofe entre pulsão de vida e de morte, para um campo onde a onipotência se transforma numa substância a ser dosada para viabilizar conquistas, sempre a um triz da aniquilação. Estou pensando também em escaladores, pilotos de competições automobilísticas de altíssima velocidade, ciclistas de torneios extenuantes. Os lados da moeda, nesses casos, são basicamente a glória ou a morte.
Garret McNamara é obcecado pelo surfe de ondas gigantes. Para além de uma paixão, de uma habilidade, ele tem uma relação de dependência total do surfe. O nível de investimento dele transcende todos os limites do razoável, e Garret retorna à água mesmo depois de sucessivas concussões, que começam a afetar suas funções cognitivas, e diversas lesões. Tem um pouco da coisa americana de que “não se pode desistir dos sonhos”? Provavelmente. Aliás, quando vejo desenhos com meu filho que falam coisas nesse tom, por vezes eu falo “pode desistir sim, filho” ou “tudo bem nem sempre dar o seu melhor”, sabendo que estou falando comigo mesma acima de tudo, mas enfim. O que pega pra mim é que Garret tem uma penca de filhos. Sua mulher e agente, Nicole, segura as pontas de absolutamente tudo, tolera um monte, e quem está lá a todo momento buscando a glória eterna é o cara. Fosse Garret um cara sozinho, faz o que quiser, né, mas tem várias pessoas diretamente ligadas a ele que estão sob ação direta dessa obsessão. O primeiro filho dele com Nicole inclusive se chama Barrel (em inglês, “tubo”) e é possível ver a tensão nos olhos do menino em competições infantis, das quais ele participa com um misto de inspiração, incentivo e pressão do pai.
Eu estou pegando no pé do sujeito? Provavelmente. Mas sabe o que não desce pra mim? Fosse essa personagem uma mulher, cheia de filho, que insiste em continuar surfando mesmo com uma demência iminente por sucessivas concussões, o mundo não a estaria deixando em paz e certamente não a celebraria se, de fato, ela conseguisse surfar a bendita onda de 100 pés.
Lembram da atleta brasileira que estava lutando pela guarda da filha enquanto competia nas Olimpíadas de Paris, ano passado? Ela nem está colocando a vida em risco toda santa vez que vai treinar e a grande estrutura da sociedade permite que o seu ex marido a infernize na busca pelos seus objetivos a cada passo do caminho.
Ver Garret McNamara completamente sustentado por toda a estrutura que sua esposa coordena, tanto pragmática quanto emocional, me dá uma pinimba dos infernos. Eu nem sei se torço pra ele conseguir surfar o diabo da onda de 100 pés ou não, pois não sei se ele ia sossegar o facho.
Entre o grupo de surfistas que a série acompanha, há algumas mulheres, incluindo as brasileiras Maya Gabeira, Michelle des Bouillons e a francesa Justine Dupont. Pelo que vi nas redes sociais, Justine teve um filho, mas a série ainda não cobriu esse acontecimento. Eu tenho CERTEZA de que, quando isso acontecer, veremos uma tsunami de dilemas (desculpem) passar pela cabeça dela. Uma coisa é você surfar enquanto sua mulher está gestando em segurança na praia. Outra coisa é ser a mulher gestando e subir num pedacinho de espuma pra descer uma montanha de água. E, depois, ser a mulher que desce uma montanha de água num pedacinho de espuma enquanto o filho está na praia, potencialmente presenciando a morte da mãe.
Pesei o clima né? Uai, mas é isso que tá em jogo mesmo. Não falo para julgar nem censurar qualquer decisão, mas para explicitar a diferença monumental da experiência de homens e mulheres nesse meio. Minha pinimba com o Garret não é apenas pela insistência no risco, é pela insistência no risco sem qualquer reflexão mais profunda em torno do que ele representa para a própria família. Eu ficaria até mais apaziguada se ele virasse pra mulher e pros filhos e dissesse: “galera, seguinte: eu sei que posso morrer ou ficar muito debilitado, mas simplesmente não é possível pra mim viver sem isso e eu prefiro morrer surfando do que parar de surfar. Então sinto muito, mas é isso aí, eu banco a possibilidade disso repercutir em vocês.” Mas não, a coisa transcorre numa jornada de herói e eu apenas não consigo bater palma sabendo do tamanho do double standard que ninguém menciona nessa história.
Como mencionei, pode ser que, fora das imagens da série, Garret até tenha tido essa conversa com a família. Novamente, estou me posicionando a partir de um recorte. Isso falaria a favor dele, do ponto de vista de ser um sujeito que banca as próprias decisões no mundo, mas, ainda assim, não mudaria nada em termos das regras do jogo, no surfe de ondas gigantes e além. Quem está autorizado a dar o sangue, fazer de tudo pelos seus sonhos e alcançar os píncaros da glória são os homens. Se uma mulher com filhos ousar buscar o mesmo, precisa estar pronta pra dar satisfações sobre quem vai cuidar das crianças se ela morrer, e disposta a ser confrontada com o peso de suas escolhas diuturnamente.
Excelente texto. Para além de todas as reflexões que você trouxe, há ainda outra parte da história: que mulher com filhos tem o privilégio de ter uma estrutura que sustente a sua obsessão? Tornar-se extremamente bom em algo exige estrutura. Exige dedicação, e uma coisa que as mães em geral não têm: tempo. Que cônjuge do sexo masculino aceita bancar a obsessão da mãe dos seus filhos?
Gostei muito de ler seu texto.
Compartilho das indignações acho que por isso hoje trabalhar com mulheres faz tanto sentido pra mim.
E uma espécie de grito bem alto sobre o quanto precisamos ser apoio pra nós mesmas e apoiar as outras.